Pesquisar este blog

7 de dezembro de 2014

Especial Comic Con: O mito super heroico, parte 1

Pra quem está lendo esse post e esse blog pela primeira vez, sim, eu gosto de quadrinhos.
Há uma dezena de motivos para isso, talvez até mais, mas eu acho que há algo na simplicidade de temas explorado com a perspectiva complexa de abrangência e a dicotomia - que depende da capacidade dos autores para abordar noções além de gente fantasiada com problemas emocionais combatendo o crime...

E existem verdadeiras pérolas no gênero (do qual eu acabo falando bastante aqui nos 'Grandes Clássicos dos Quadrinhos', e, sem muita regularidade, ainda falo em resenhas para o Universo HQ). Acho que o gênero é discriminado por uma série de motivos - de Friederic Wertham e "Como Ler Pato Donald" a uma idiotice convencionada em se discriminar gente que gosta de ler, afinal, não é a toa que livrarias por todo o canto estão fechando...
É claro que existe muita droga (algumas que vendem muito bem), é claro que muitos gênios no gênero são ignorados e muita coisa acaba bastante pasteurizada graças à produção em massa - afinal são produtos, que precisam de comercialização rápida, acessível (as editoras lançam, no mínimo, 12 edições anuais de seus principais personagens, sendo que alguns tem mais de uma revista/série), mas algumas concepções são bem estabelecidas.

Como Joseph Campbell e Kurt Vonnegut antes de mim, é possível ver certos padrões nas histórias e notar que as duas principais editoras americanas tem duas visões discrepantes em sua forma de estruturar personagens e contar suas histórias. Em linhas gerais, enquanto a DC Comics (editora de Batman, Superman e cia) trabalha com uma noção mais abrangente e universal da ideia do herói mitológico (o 'herói de mil faces' de Campbell), um panteão de deuses (mas não apenas os deuses gregos, diga-se de passagem, mais sobre isso nas próximas linhas) com suas picuinhas, desavenças e intrigas, a Marvel (Homem Aranha, Vingadores) trabalha mais focada, com a ideia do mito do sonho americano, e, mais próxima dos dias atuais, observa como Arthur Miller, John Steinbeck ou Jack Kerouac a desconstrução deste mito.

Parte 1 - Heróis de mil faces

Em 'O herói de mil faces', Joseph Campbell - reconhecidamente, um dos maiores estudiosos e mais profundos intérpretes da mitologia universal - apresenta o herói compósito. O relacionamento entre seus símbolos atemporais e os símbolos detectados nos sonhos pela moderna psicologia profunda é o ponto de partida da interpretação oferecida por Campbell. O autor definiu a 'Jornada do Herói' /monomito (mostrada no diagrama abaixo e no sintetizada no vídeo de Glove and Boots no link), e enquanto ambas permeiem por todas as histórias importantes da literatura, cinema e artes em geral, denotam com grande ênfase em todo e cada um dos personagens da DC.


O menino rico vê seus pais assassinados diante de seus olhos. A mulher perfeita é moldada do barro. Menino descobre que é o rei dos mares. Homem é atingido por raio e se torna a pessoa mais rápida do mundo. Homem comum recebe a arma definitiva.

Estas são apenas algumas das histórias que englobam os principais personagens da DC, e, todos eles tem paralelos com deuses do panteão grego-romano (Batman/Hades, Mulher Maravilha/Ártemis, Aquaman/Poseidon, Flash/Mercúrio, Lanterna Verde/Hefésto), inclusive nos vilões clássicos, principalmente do Homem Morcego (Duas-Caras/Janus, Espantalho/Phobos, Hera Venenosa/Flora).

Assim como antes dos deuses gregos existem os Titãs, no grande esquema das coisas do Universo DC, dois mundos distantes carregam uma raça de criaturas superioras e antiguíssimas, chamados 'novos deuses'. Ambos carregam longos e conturbados relacionamentos entre seus panteões (enquanto Cronus castra seu pai e come seus filhos, temendo que um deles possa usurpar seu trono, os Novos Deuses trazem a história de um longo conflito que tem fim quando dois soberanos decidem um pacto em que trocam seus filhos primogênitos - o que resulta, anos mais tarde em filho e pai iniciarem um longo conflito por controle). De mesma forma, estes titãs fazem parte de uma longa casta prestes a ser suplantada pela nova geração.

O equivalente de Zeus, porém, não é o Superman, ao contrário do que alguns poderiam imaginar (já que ele é o grande nome da Liga da Justiça e da editora). Superman é uma representação mais clara da mitologia comparada, funcionando como um representante das religiões judaico cristãs, uma vez que incorpora boa parte de seus conceitos. Como Moisés é enviado por seus pais para ser criado por um povo, onde será um líder natural; Como Cristo, morreu, ressuscitou e encarna três vozes diferentes - a do último filho de Krypton, Kal-El, a da voz que se espalha na Terra como Clark Kent e o do realizador de milagres e grande figura pública como Superman - também tem em seu panteão vilões que representam os ideais contrários aos da religião, tendo o demônio manifesto na figura de Lex Luthor - manipulador, sempre forjando acordos e tentando destruir o que é virtuoso.

No entanto é o personagem SHAZAM ou Capitão Marvel que representa o lorde do Olimpo, manipulando a eletricidade, sendo capaz de mudar - e assumir - outras formas, e com dois vilões que claramente representam dois pontos cruciais da mitologia de Zeus: Dr Silvana (que quer roubar o fogo dos deuses, como Prometeu) e Adão Negro (o 'pai' figurativo, ancestral poderoso que quer destruí-lo).

Alguns são mais óbvios Sandman e o deus dos sono, Morfeu (bastante destrinchado por Neil Gaiman em sua série de 75 edições mais especiais), Starman e o deus dos caminhos (e fertilidade - até porque, curiosamente, é o único personagem a ter descendentes) Hermes.

Enquanto outros nem tanto, pois dependem de uma aproximação multicultural, como Mulher Gato/Bastet - que é geralmente dócil e bondosa mas é territorialista, protetora e pode ser bastante perigosa - Gavião Negro/Ra - que teve várias encarnações diferentes e, cuja contraparte 'viajava' pelo mundo dos mortos durante a noite, ou mesmo o muitas vezes ignorado Caçador de Marte e a raposa mística Kitsune do folclore japonês, que pode assumir várias formas, voar, ficar invisível e 'entrar nos sonhos' das pessoas... - Que é o mais próximo que achei de telepatia), ou a diminuta Anansi, aranha que representa a sabedoria e conhecimento, menosprezada por seu tamanho e constantemente enrolada em sua própria teia, como o Átomo. Alguns casos tem a personalidade dispersada e dividida, como Loki das Eddas Nórdicas, o deus da trapaça e confusão (nas figuras do Charada e do Galhofeiro, vilões que, dificilmente representam perigo)  e engloba outros mitos e histórias clássicas. Enquanto o Coringa é o "Herói Absurdo" de Camus - como sua resposta ao mito de Sísifo (condenado a condição de repetir uma tarefa indefinidamente, já que uma vez concluída, seu carcereiro o mandaria de volta ao começo para fazer tudo de novo - a diferença é que o começo para o Coringa é a cadeia e sua tarefa a de atrair a atenção de seu carcereiro, motivo inclusive pelo qual nem ele, Coringa, nem o Homem Morcego matam um ao outro). Já que tudo é ilógico, ele busca deixar sua marca no mundo, produzir sua arte... Mesmo que seja como corpos desmembrados e gente morta enquanto aguarda para ser capturado e enviado novamente ao Arkham por seu carcereiro (o guardião das tumbas, o homem morcego).

A editora trabalha bastante com a ideia de passar de tempo e gerações - os heróis clássicos/originais da Segunda Guerra (A Sociedade da Justiça), os heróis da Era de Prata dos quadrinhos, ou da Era Espacial (A Liga da Justiça) e posteriormente a nova geração de heróis mais novos e parceiros mirins (Os Jovens Titãs), que ainda que já existissem há tempos, se uniriam como uma força a ser reconhecida, como no caso do Kid Flash assumindo o papel de seu mentor falecido... E ainda existe a quarta geração (não se esqueça, estamos falando de uma editora com mais de 75 anos aqui), a Justiça Jovem, surgindo no fim dos anos 90.

No entanto, de acordo com o passar dos tempos e mudanças na necessidade e adaptação das histórias, nem sempre as condições de suas histórias e paralelos se mantém (como os deuses na mitologia, que ora são bondosos, generosos e virtuosos, e ora vingativos, doentios e destrutivos), inclusive com a adição de noções e mitos modernos (o próprio Arkham mencionado anteriormente, advindo dos mitos de Ctchullu de H P Lovecraft). Aquaman, por exemplo, tem muito mais paralelos com as crônicas Arthurianas (seja de T H White ou das histórias mitológicas do personagem), que com o deus marítimo grego, inclusive no nome, nas imagens clássicas (os longos cabelos loiros, a barba imponente e a ideia que o rei perdido/desaparecido poderia levar um reino perdido de volta à sua glória). A origem da Mulher Maravilha se assemelha mais à história grega de Pandora ou a outros mitos de criação (tanto católicos quanto dos índios nativo-americanos), enquanto a personagem reverbera a índole da mulher guerreira (literalmente de que 'faz guerra'), ainda que também mãe e protetora... Como Hera.
 Isso também marca as noções e necessidades destes personagens.
Seus constantes conflitos e, em diversas ocasiões quase desdém pela humanidade, se faz pela noção clara de sua superioridade de casta. Estão acima dos seres comuns, e fazem questão de lembrá-lo (e a nós), com seus satélites em órbita do planeta e fortalezas escondidas em lugares desolados onde somente eles podem ir).

Essencialmente, os heróis e vilões da DC são a recomposição de mitos antigos. O estabelecimento de histórias antigas e universais que compõem a humanidade.

Um comentário: